Dom Pedro I criou Supremo
Tribunal com poderes esvaziados
Os olhos
do Brasil têm se voltado com frequência para o Supremo Tribunal Federal. O país
adquiriu o hábito de acompanhar com interesse e expectativa a palavra final dos
11 ministros em processos que afetam os rumos da política, da economia e até
dos comportamentos sociais.
Tal
protagonismo, porém, não vem de berço. Quando foi criado, 190 anos atrás, o
mais alto tribunal do país era supremo só no nome.
O Supremo Tribunal de Justiça, como
foi batizado, nasceu de uma lei de setembro de 1828 que previa uma Corte
esvaziada, quase decorativa, sem competência para influir nas questões mais
relevantes do Império.
Antes de receber a assinatura de dom
Pedro I e virar lei, o projeto do Supremo foi discutido e votado pelos
deputados e senadores.
— O Supremo Tribunal não julgará —
sentenciou o senador Visconde de Inhambupe (PE), anunciando a grande vedação
imposta à nascente cúpula do Poder Judiciário, de acordo com documentos da
época preservados pelo Arquivo do Senado.
— Não podemos dar ao tribunal a
atribuição de interpretar a lei. Isso pertence ao legislador — acrescentou o
senador Carneiro de Campos (BA), citando outra limitação.
Em 1828, o Brasil era um país
recém-independente e corria para enterrar ou atualizar as velhas instituições
coloniais. A Constituição fora outorgada em 1824, prevendo quatro Poderes.
Pedro I reinava como titular dos Poderes Executivo e Moderador (que dava ao
monarca a palavra final em todas as questões do Império). O Legislativo,
dividido entre Senado e Câmara, funcionava desde 1826. A pendência era o
Judiciário.
Estratégia imperial
O Supremo tinha uma função meramente
anulatória. A incumbência básica dos ministros era decidir se certas
condenações seriam invalidadas e se os respectivos processos passariam por um
novo julgamento, que se chamava “revista”.
Após a sentença de algum Tribunal da
Relação (a segunda instância do Judiciário imperial), as partes podiam recorrer
ao Supremo e pedir revista quando considerassem a decisão injusta por causa de
alguma falha no processo — prazo para apresentar provas não concedido, pedido
de acareação negado, convocação de testemunhas questionáveis, condenação maior
que a prevista na lei etc.
Os
ministros não se aprofundavam nos crimes ou litígios, mas no aspecto técnico
dos processos. Caso o Supremo concordasse com os argumentos da apelação, o
processo iria a outro Tribunal da Relação, que faria o novo julgamento.
—
Porventura, o Supremo Tribunal será a terceira instância da Justiça? Não será.
Não podemos mudar a Constituição, que estabelece unicamente duas instâncias —
afirmou o senador Marquês de Caravelas (BA).
Só
chegavam ao Supremo recursos envolvendo causas particulares — assassinatos ou
brigas por herança, por exemplo. Não cabia ao tribunal analisar nada que
tocasse nos interesses do governo.
—
Foi proposital. A criação de um Supremo isolado e esvaziado fez parte da
estratégia política de Pedro I de concentrar todo o poder em suas mãos —
explica a advogada e professora Carla Beatriz de Almeida, autora de uma
dissertação de mestrado na Universidade Federal de Juiz de Fora sobre o
Supremo.
Segundo
o historiador da Universidade de Brasília Antonio Barbosa, Pedro I fora educado
para ser um rei absolutista, mas, quando chegou a hora de subir ao trono, o
mundo não era o mesmo:
— Acabava
o antigo regime e começava a era do liberalismo, das monarquias
constitucionais. Pedro I não estava preparado para isso, o que fez seu reinado
ser marcado, do início ao fim, por crises e conflitos. Ele nunca gostou de ter
seu poder limitado. Foi por isso que dissolveu a Assembleia Constituinte, em
1823. Foi por isso que criou um Supremo inofensivo.
Nas
discussões sobre o Supremo, senadores tentaram impedir que Pedro I tivesse a
prerrogativa de escolher o presidente do tribunal. Para eles, isso impediria
que o Judiciário fosse independente.
—
É necessário que esses magistrados não tenham nada a que aspirar. Como hão de
dar uma sentença com franqueza sabendo que o imperante, de quem dependem para
subir à Presidência do tribunal, deseja que ela seja dada desta ou daquela
maneira? Um ou outro poderá deslizar-se do seu dever — advertiu o Marquês de
Caravelas, defendendo que o presidente fosse eleito pelos próprios colegas.
Salário de ministro
Os
aliados do imperador no Senado falaram mais alto e derrubaram argumentos como o
de Caravelas.
—
Não se pode figurar o novo tribunal como colégio pontifício ou colégio
eleitoral, que cheiram a democracia demais — ironizou o senador Visconde de
Cayru (BA).
—
Além disso, é de experiência que o presidente de nomeação do monarca infunde
superior respeito e previne alterações e indecências que às vezes se
experimentam.
Logo
no primeiro artigo, a lei de 1828 dizia que o Supremo seria composto de 17
ministros — número ímpar para evitar empates — e que eles usariam beca e capa,
seriam tratados por “excelência”, trabalhariam dois dias por semana e
receberiam 4 contos de réis. O valor do salário animou os debates no Senado.
—
O ordenado de 4 contos de réis não é suficiente para esses primeiros
magistrados, que devem ter um tratamento muito decente. Só a casa e uma
carruagem montada levam metade dessa quantia — disse Carneiro de Campos.
O
senador Marquês de Santo Amaro (RJ) chegou a apresentar uma emenda prevendo um
ordenado de 4 contos e 800 mil-réis, mas os colegas a rejeitaram.
Retrato na parede
Na
composição inicial, o Supremo teve 14 ministros. Três assentos ficaram vagos.
Os lugares deveriam ser ocupados pelos desembargadores mais antigos dos quatro
Tribunais da Relação do Império (RJ, BA, PE e MA). A professora Carla Beatriz
explica:
—
É provável que desembargadores tenham recusado o convite do governo. Pela
estrutura que se deu ao Supremo, o mais vantajoso para os juízes era permanecer
nos tribunais de segunda instância, onde tinham muito mais poder e prestígio e
de onde podiam partir para a carreira política. Afinal, eram os Tribunais da
Relação que davam a decisão final nos processos judiciais, e não o Supremo.
O
desprestígio do tribunal ficou evidente logo na inauguração, em janeiro de
1829. Pedro I não se dignou a comparecer. Os ministros tiveram que se dar por
satisfeitos com um retrato do imperador afixado na parede. Além disso, o
Supremo não ganhou um prédio próprio. Os trabalhos começaram, em caráter
provisório, no velho casarão do Senado da Câmara (espécie de câmara de
vereadores da época colonial), no Rio.
Diferentes
reformas foram aventadas no decorrer das décadas seguintes para fortalecer o
Supremo Tribunal de Justiça. Nenhuma prosperou. As mudanças só vieram a partir
da República — a começar pelo nome, que passou para Supremo Tribunal Federal em
1890. O atual protagonismo se deve aos poderes que lhe foram conferidos pela
Constituição de 1988.
RL News, você vê primeiro aqui!
[Informações do Senado / Biografia do Marquês de Inhambupe / Fotos reprodução -google / Embora seja visconde de Inhambupe, RL News não encontrou em suas pesquisas, fontes que comprovem uma ligação direta com o município de Inhambupe - Ba. Em 1828, Visconde de Inhambupe tinha 68 anos de idade.]
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