O decreto presidencial que promoveu
alterações na regulamentação da Lei de Acesso à Informação (LAI) para ampliar o
número de pessoas autorizadas a decidir sobre o sigilo de dados públicos viola
a Constituição, ‘pois afronta princípios legais de participação, transparência
e controle da gestão pública, entre outros aspectos’. A análise é da
Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão que integra o
Ministério Público Federal.
As informações foram divulgadas pela
Assessoria de Comunicação e Informação da Procuradoria.
O decreto 9.690/19 foi publicado pelo governo federal no dia 23 de janeiro e estabeleceu novas regras sobre a delegação de competência para classificação de informações em grau reservado, secreto e ultrassecreto.
Com a medida, mais de mil servidores,
inclusive comissionados, podem ser autorizados a conferir sigilo a documentos
públicos, ‘o que contraria a concepção própria da Lei, fundamentada no
imperativo constitucional da democracia participativa, do controle da gestão
pública e do acesso aos documentos que integram o patrimônio cultural
brasileiro’.
“Trata-se de uma ampliação que
permitirá delegação para um universo de até 1,1 mil autoridades”, alertam a
procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, e o procurador-adjunto
Marlon Weichert, que também é coordenador do Grupo de Trabalho sobre Memória e
Verdade do Ministério Público Federal.
“E, talvez ainda mais grave, um grupo
superior a 200 pessoas poderá realizar a classificação no nível mais alto, o de
ultrassecreto, eliminando do acesso público a documentos por até 25 anos”,
afirmam Duprat e Weichert.
Originalmente, a Lei de Acesso à
Informação estabelece que apenas o presidente, o vice e os ministros de Estado
têm competência para determinar a classificação de documentos como
ultrassecretos, cuja possibilidade de sigilo é de até 25 anos.
Os comandantes militares e os chefes de
Missões Diplomáticas e Consulares permanentes no exterior também estão
autorizados, mas devem submeter sua decisão à ratificação pelos respectivos
ministros de Estado.
Para a classificação de documentos como
secretos, cujo prazo de sigilo é de até 15 anos, o rol de autoridades
competentes se amplia um pouco, para incluir os titulares de autarquias,
fundações ou empresas públicas e sociedades de economia mista.
Já para as informações consideradas
como reservadas, o poder de classificação também é designado a autoridades que
exerçam funções de direção, comando ou chefia, nível DAS 101.5, ou superior, do
Grupo-Direção e Assessoramento Superiores, ou equivalentes.
Pedido
de inconstitucionalidade
Nesta segunda-feira, 11, a Procuradoria
Federal dos Direitos do Cidadão encaminhou à procuradora-geral da República,
Raquel Dodge, representação solicitando que seja analisada a possibilidade de
se apresentar ao Supremo Tribunal Federal pedido de inconstitucionalidade do
Decreto nº 9.690/2019, no trecho em que altera os parágrafos 1.º a 4.º da Lei
de Acesso à Informação.
Na representação à PGR, a Procuradoria
do Cidadão propõe que, ‘diante dos argumentos apresentados, também seja
analisada a inconstitucionalidade da Portaria nº 17, publicada em 4 de
fevereiro de 2019 e assinada pelo ministro Augusto Heleno Ribeiro Pereira’ – a
normativa delega competência de classificação de informações nos graus
ultrassecreto e secreto do ministro de Estado Chefe do Gabinete de Segurança
Institucional da Presidência da República para autoridades da Agência
Brasileira de Inteligência, a Abin.
Em seu conjunto de argumentos, a
Procuradoria destaca que a Lei de Acesso à Informação ‘sempre esteve orientada
pela máxima contenção no que diz respeito à classificação de uma informação
como sigilosa’. “Não por acaso, ao consagrar a transparência da informação como
princípio, essa legislação cuidou – minuciosa e especificamente – das autoridades
competentes para a decretação de sigilo como garantia do direito afirmado.”
“A razão, para tanto, parece óbvia.
Sendo a transparência o princípio regulador da lei, e o sigilo, a exceção, a
decretação deste é reservada, de acordo com o seu grau, às autoridades máximas
da administração pública. A Lei de Acesso à Informação não ignora que a
informação, mesmo sigilosa, é acessada por uma cadeia hierárquica de
servidores. Fez a opção de que os últimos escalões teriam o poder da
classificação, e os demais, de preservação do sigilo.”
O órgão do Ministério Público Federal
ressalta ainda que um decreto não pode alterar o objetivo de uma norma legal,
bem como ampliar ou reduzir sua abrangência.
“Os decretos têm por função disciplinar
a execução da lei, ou seja, explicitar o modo pelo qual a administração
operacionalizará o cumprimento da norma legal. Sua função é facilitar a
execução da lei, torná-la praticável e, principalmente, facilitar ao aparelho
administrativo a sua fiel observância.”
Controle
governamental e combate à corrupção
Em sua análise, a PFDC destaca que a
LAI ‘é resultado de ampla mobilização de organizações da sociedade civil –
dentre elas, a Transparência Brasil, fundada em 2000 por organizações
não-governamentais e entidades empresariais voltadas principalmente ao combate
à corrupção; o Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas, fundado em
2003, por cerca de 20 organizações sem vínculo partidário; e a Contas Abertas,
criada em 2005, com foco no monitoramento da execução orçamentária da União’.
“A promulgação da lei no Brasil acabou
por inserir o país em um movimento mundial que se fortalece a partir da década
de 90 e que combina, de um lado, o avanço da democracia, com seus componentes
indissociáveis de liberdade de expressão e de informação, e, de outro, as
inovações tecnológicas, especialmente a internet”
A Procuradoria ressalta que é
patrimônio cultural brasileiro toda a documentação pública, especialmente
aquela que permita o conhecimento de dados históricos, que podem ser apropriados,
coletiva ou individualmente, de diversas formas, inclusive mediante
retificação.
No documento, a Procuradoria cita o
voto da ministra Carmen Lúcia no julgamento da ADPF 153 no Supremo, no qual
destacou que ‘o direito à verdade garante que todo povo tem direito de conhecer
toda a verdade da sua história, todo o cidadão tem o direito de saber o que o
Estado por ele formado faz, como faz, porque faz e para que faz’.|estadão / Foto: Pixabay